Chego, conduzido. Durante
a viagem ouço com alguma dificuldade o que conversam nos acentos de quem dirige
e acompanhante. A paisagem noturna só com luzes intermitentes, sem imagens com
maior atração. Converso com o garoto que está ao meu lado. Ele leva uma
maletinha com ferramentas. A pesquisa sobre plantas e insetos parece ser o que
mais lhe interessa. Tiro da minha bolsa canivete com múltiplas funções. Ele tem
um semelhante, só que menor do que o meu. O carro chega a uma casa que eu já
conhecia. Brinco chamando de SPA a residência. Vou passar, no dia seguinte, por
alguns exames médicos de controle e manutenção. Quando atingimos idade
avançada, tomar contato com o novo cotidiano existencial não é fácil. Sempre me
considerei adolescente, indo aos poucos compreendendo que não sou mais o mesmo.
Pressão alta, um pouco de surdez, baixo testosterona, interesses que vão mudando.
aposentado, maior necessidade de estar comigo mesmo. Silêncio, certo afastamento
das pessoas. Sinto falta da proximidade de gente querida, muitas vezes
preferindo certa solidão. Felizmente, quase sem tédio. Por um pouquinho mais de
oitenta anos, falhas de memória, bobos esquecimentos, a gente se achar muito
monitorado, isso vai ficando cada vez mais perturbador. Escrever é o que mais
faço. Muitos momentos pensando, a literatura como o ócio mais importante. A necessidade de vê-la até como
obrigação. Agora, no quarto onde dormi,
em jejum, preparado para os exames médicos programados, só me resta esta dança
das palavras. Se tiver vontade de urinar não posso fazê-lo. Nada comer, só
mesmo uma aguinha para beber. Tomei banho (proibidos, hoje, os meus alongamentos),
aqueci meu corpo com agasalhos, tal o frio deste julho. Arrumei a cama, pondo
alguma ordem no quarto. Lá fora, muito sol, eu sem a chave da porta-balcão. Digito
neste notebook precioso. Ao lado, aquela
mochila que comprei, há anos, no Paraguai. Jornais de ontem e anteontem,
caderno de anotações (inclui dados que vou registrando sobre pressão
arterial), outros objetos como celular, um livro de Inácio ferreira, que
costumo reler, lata fechada com meus remédios para pressão, próstata, e um
infantil AAS 100mg.
De repente o texto anterior ficou
todo em caixa alta... Lido al com esta máquina. Acho que o melhor é dar um
tempo. Já deve estar na hora de ser levado aos exames. Uma coisa que ainda não
disse: para confirmar a idade provecta a gente passa a ser probibido de dirigir
em estradas, até a andar por certas ruas, trancar a porta do banheiro e fazer
coisas sem comunicar. Tomar iniciativas, então, nem se fala.
(Campinas,
06/07/2017)
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Exames de sangue e urina, da
pressão com troca de remédios. Hoje, dia seguinte, farei mais dois exames.
Ontem, à noite, retomei a leitura de “Espíritos e Deuses”, de Inácio Ferreira,
psicografia de Baccelli. Eu me imagino no planeta espiritual, com os pés em
chão sólido, necessidades fisiológicas em dia, às vezes até volitando. Parece
um tremendo contraste. Próximo à crosta terrena, cópia imperfeita do mundo dos
desencarnados. Platão, século V a.C., já dizia isso na sua linguagem. Espero
agir diferente dos indianos que encaram e aceitam a reencarnação com naturalidade,
mas permanecem alheios ao seu transcendente significado – nas palavras de
Inácio. Ele continua: raros são os que atingem um nível de compreensão superior
e começam a se importar com o próximo; de um modo geral, os indianos, vivem num
círculo psíquico vicioso, entrando e saindo do corpo físico repetidas vezes, aguardando
súbita iluminação interior às custas de austeras disciplinas espirituais. Um
bilhão de espíritos encarnados e, talvez, três vezes mais desencarnados. Índia,
país dividido em milhares de castas e
com grandes contrastes espirituais. Segundo os Upanichades, “do mesmo modo que
os rios que correm desaparecem no mar e perdem nome e forma, um homem sábio,
libertado de nome e forma, vai para a pessoa divina que está além de tudo”.
Crer no aquém de tudo pressupõe o oposto pleno de força. Fecho esta parte do
texto com os dizeres às portas de um templo em Nova Delhi:
“Traze
daí um figo.”
“Aqui
o tens, senhor.”
“Divide-o.”
“Ei-lo
dividido, senhor.”
“Que
vês?”
“Pequeninas
sementes, senhor.”
“Divide
uma delas.”
“Está
dividida, senhor.”
“Que
vês nela?”
“Nada,
senhor.”
“Na
verdade, meu caro, é dessa fina essência que tu não vês que as grandes
figueiras crescem. Crê, meu caro, que esta é a mais alta essência? O Universo
tem esta essência como a sua alma. Esta é a Realidade. Isto é Atman... Tat twam asi – isto és tu,
Shwetaketu.”
“Fizeste-me
compreender, senhor.”
“Assim
seja, meu caro.”
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