11/07/2017

IDADE PROVECTA

Chego, conduzido. Durante a viagem ouço com alguma dificuldade o que conversam nos acentos de quem dirige e acompanhante. A paisagem noturna só com luzes intermitentes, sem imagens com maior atração. Converso com o garoto que está ao meu lado. Ele leva uma maletinha com ferramentas. A pesquisa sobre plantas e insetos parece ser o que mais lhe interessa. Tiro da minha bolsa canivete com múltiplas funções. Ele tem um semelhante, só que menor do que o meu. O carro chega a uma casa que eu já conhecia. Brinco chamando de SPA a residência. Vou passar, no dia seguinte, por alguns exames médicos de controle e manutenção. Quando atingimos idade avançada, tomar contato com o novo cotidiano existencial não é fácil. Sempre me considerei adolescente, indo aos poucos compreendendo que não sou mais o mesmo. Pressão alta, um pouco de surdez, baixo testosterona, interesses que vão mudando. aposentado, maior necessidade de estar comigo mesmo. Silêncio, certo afastamento das pessoas. Sinto falta da proximidade de gente querida, muitas vezes preferindo certa solidão. Felizmente, quase sem tédio. Por um pouquinho mais de oitenta anos, falhas de memória, bobos esquecimentos, a gente se achar muito monitorado, isso vai ficando cada vez mais perturbador. Escrever é o que mais faço. Muitos momentos pensando, a literatura como o ócio mais importante.  A necessidade de vê-la até como obrigação.  Agora, no quarto onde dormi, em jejum, preparado para os exames médicos programados, só me resta esta dança das palavras. Se tiver vontade de urinar não posso fazê-lo. Nada comer, só mesmo uma aguinha para beber. Tomei banho (proibidos, hoje, os meus alongamentos), aqueci meu corpo com agasalhos, tal o frio deste julho. Arrumei a cama, pondo alguma ordem no quarto. Lá fora, muito sol, eu sem a chave da porta-balcão. Digito neste notebook precioso.  Ao lado, aquela mochila que comprei, há anos, no Paraguai. Jornais de ontem e anteontem, caderno de anotações (inclui dados que vou registrando sobre pressão arterial), outros objetos como celular, um livro de Inácio ferreira, que costumo reler, lata fechada com meus remédios para pressão, próstata, e um infantil AAS 100mg.     

De repente o texto anterior ficou todo em caixa alta... Lido al com esta máquina. Acho que o melhor é dar um tempo. Já deve estar na hora de ser levado aos exames. Uma coisa que ainda não disse: para confirmar a idade provecta a gente passa a ser probibido de dirigir em estradas, até a andar por certas ruas, trancar a porta do banheiro e fazer coisas sem comunicar. Tomar iniciativas, então, nem se fala.

                                              (Campinas, 06/07/2017)

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Exames de sangue e urina, da pressão com troca de remédios. Hoje, dia seguinte, farei mais dois exames. Ontem, à noite, retomei a leitura de “Espíritos e Deuses”, de Inácio Ferreira, psicografia de Baccelli. Eu me imagino no planeta espiritual, com os pés em chão sólido, necessidades fisiológicas em dia, às vezes até volitando. Parece um tremendo contraste. Próximo à crosta terrena, cópia imperfeita do mundo dos desencarnados. Platão, século V a.C., já dizia isso na sua linguagem. Espero agir diferente dos indianos que encaram e aceitam a reencarnação com naturalidade, mas permanecem alheios ao seu transcendente significado – nas palavras de Inácio. Ele continua: raros são os que atingem um nível de compreensão superior e começam a se importar com o próximo; de um modo geral, os indianos, vivem num círculo psíquico vicioso, entrando e saindo do corpo físico repetidas vezes, aguardando súbita iluminação interior às custas de austeras disciplinas espirituais. Um bilhão de espíritos encarnados e, talvez, três vezes mais desencarnados. Índia, país dividido em  milhares de castas e com grandes contrastes espirituais. Segundo os Upanichades, “do mesmo modo que os rios que correm desaparecem no mar e perdem nome e forma, um homem sábio, libertado de nome e forma, vai para a pessoa divina que está além de tudo”. Crer no aquém de tudo pressupõe o oposto pleno de força. Fecho esta parte do texto com os dizeres às portas de um templo em Nova Delhi:
“Traze daí um figo.”
“Aqui o tens, senhor.”
“Divide-o.”
“Ei-lo dividido, senhor.”
“Que vês?”
“Pequeninas sementes, senhor.”
“Divide uma delas.”
“Está dividida, senhor.”
“Que vês nela?”
“Nada, senhor.”
“Na verdade, meu caro, é dessa fina essência que tu não vês que as grandes figueiras crescem. Crê, meu caro, que esta é a mais alta essência? O Universo tem esta essência como a sua alma. Esta é a Realidade. Isto é Atman... Tat twam asi – isto és tu, Shwetaketu.”
“Fizeste-me compreender, senhor.”
“Assim seja, meu caro.”

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