01/06/2017

O GRITO PRIMAL


Imagine que você está muito doente, com uma neurose incurável. É quando lhe chega ao conhecimento a terapia do “grito primal”. Antes de começar o tratamento ocorre que o problema não é só seu, mas social. Tem a ver com a forma como a democracia representativa é praticada entre nós.

A cura da doença faz incríveis exigências que chegam a transtornar o nosso dia a dia. “Ao sentir dor, ela pode ser afastada” – o que se assevera. Nas primeiras sessões da terapia do “grito primal” surgem novos insights. A pessoa fica envolvida nas próprias memórias. Da infância à vida adulta. Ocorre um nível crítico em que é grande a regressão. Vamos até os tempos coloniais, passando por todas as ditaduras do país, até a última dos militares. O paciente encorajado a dar o “grito” sente o que não sentiu no passado. Pelo menos na mesma intensidade. Agora é muito pior. Dá para chorar a cântaros. Mas o duro mesmo do tratamento é se ficar impedido, durante o processo, de dormir, ver televisão, usar celular, falar, fumar. Difícil admitir ser proibido de dormir. A justificativa é que no sono o estado onírico chega a aliviar tensões, desfazendo as defesas produtoras de escape. Sentir-se exausto e sofrer são condições sem as quais não acontece o “grito primal”. Hoje, desconhecendo essa terapia, o que se encontra  para as crises pode ser dormir, ler e escrever. Vale a experiência: depois do “grito”, o passado tende a ser só passado.

“Era uma vez...”

Quantas vezes agimos por impulso sem entender direito o motivo. Parece até que temos uma “mente escondida”. Ou algo recalcado cujo interesse maior é para as lides psicanalíticas. Jung fala em dois inconscientes – o pessoal e o coletivo. Tudo na vida do sujeito deságua aí. O “pessoal” é mais próximo; o “coletivo” encerra a história global do ser humano. Atinge todo o espaço-tempo. Como o assunto sugere considerações aprofundadas, vamos para o mais prosaico: o que faz parte de casos e histórias infantis. “Era uma vez...” na política é, segundo João Pereira Coutinho, quando essa nostalgia da infância sequestra os melhores espíritos. Li na última terça, 30 de maio, “Os cavaleiros da triste figura”, artigo a comentar “o namoro grotesco dos intelectuais com o totalitarismo”. Sei que sou atrapalhado nas minhas exegeses, só me permitindo desculpas, pelo olhar  plástico e impressionista. Na realidade, meu interesse se detém numa forma superficial para emplacar o “grito primal”. No artigo, referências a Dom Quixote, em que Coutinho menciona a crença de que existe um passado sem pobreza, insegurança, competição, etc. Trata-se de  pensamento reacionário tipo Trump ou Marine Le Pen. O passado como um “paraíso perdido”? Aí, no presente, caberia reencontrá-lo. Citar Dom Quixote pode ser o mesmo que imaginar quem não compreende que o passado é passado. Gente que luta contra “a natureza do tempo”, incapaz de ver que a modernidade é diferente. Se não acomodamos o abismo entre o real e o ideal, o que existe e o que deveria existir, resta o quê? Aceito que da infância ao adulto, o passado carrega muito para melhorar ou dificultar a vida. E a ironia pode ser dispensável afim de acomodar o abismo citado. Ainda não li o livro “As Ideias Conservadoras”, de Eduardo Coutinho. Há um subtítulo: “Explicadas a Revolucionários e Reacionários”.  De Trump ou Le Pen – acrescento nossos políticos, na sua maioria –, trata-se de “mentes naufragadas”, gente que namora com o totalitarismo. Recomendo o artigo de Coutinho para que se avalie com maior precisão as ideias do autor português. Proteção econômica acima do social esquecido, fechamento nos interesses de uma oligarquia a beneficiar a minoria governante, cujo rabo se prende à corrupção. Atua-se com a memória no passado, o que nele existe de locupletação. Recorrência ao “era uma vez...” típico de crianças, não de adultos.


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