Imagine que
você está muito doente, com uma neurose incurável. É quando lhe chega ao
conhecimento a terapia do “grito primal”. Antes de começar o tratamento ocorre
que o problema não é só seu, mas social. Tem a ver com a forma como a
democracia representativa é praticada entre nós.
A cura da doença faz incríveis
exigências que chegam a transtornar o nosso dia a dia. “Ao sentir dor, ela pode
ser afastada” – o que se assevera. Nas primeiras sessões da terapia do “grito
primal” surgem novos insights. A
pessoa fica envolvida nas próprias memórias. Da infância à vida adulta. Ocorre
um nível crítico em que é grande a regressão. Vamos até os tempos coloniais,
passando por todas as ditaduras do país, até a última dos militares. O paciente
encorajado a dar o “grito” sente o que não sentiu no passado. Pelo menos na
mesma intensidade. Agora é muito pior. Dá para chorar a cântaros. Mas o duro
mesmo do tratamento é se ficar impedido, durante o processo, de dormir, ver televisão,
usar celular, falar, fumar. Difícil admitir ser proibido de dormir. A
justificativa é que no sono o estado onírico chega a aliviar tensões, desfazendo
as defesas produtoras de escape. Sentir-se exausto e sofrer são condições sem
as quais não acontece o “grito primal”. Hoje, desconhecendo essa terapia, o que
se encontra para as crises pode ser
dormir, ler e escrever. Vale a experiência: depois do “grito”, o passado tende
a ser só passado.
“Era uma vez...”
Quantas
vezes agimos por impulso sem entender direito o motivo. Parece até que temos
uma “mente escondida”. Ou algo recalcado cujo interesse maior é para as lides
psicanalíticas. Jung fala em dois inconscientes – o pessoal e o coletivo. Tudo
na vida do sujeito deságua aí. O “pessoal” é mais próximo; o “coletivo” encerra
a história global do ser humano. Atinge todo o espaço-tempo. Como o assunto
sugere considerações aprofundadas, vamos para o mais prosaico: o que faz parte
de casos e histórias infantis. “Era uma vez...” na política é, segundo João
Pereira Coutinho, quando essa nostalgia da infância sequestra os melhores
espíritos. Li na última terça, 30 de maio, “Os cavaleiros da triste figura”, artigo
a comentar “o namoro grotesco dos intelectuais com o totalitarismo”. Sei que
sou atrapalhado nas minhas exegeses, só me permitindo desculpas, pelo
olhar plástico e impressionista. Na
realidade, meu interesse se detém numa forma superficial para emplacar o “grito
primal”. No artigo, referências a Dom Quixote, em que Coutinho menciona a
crença de que existe um passado sem pobreza, insegurança, competição, etc.
Trata-se de pensamento reacionário tipo
Trump ou Marine Le Pen. O passado como um “paraíso perdido”? Aí, no presente,
caberia reencontrá-lo. Citar Dom Quixote pode ser o mesmo que imaginar quem não
compreende que o passado é passado. Gente que luta contra “a natureza do
tempo”, incapaz de ver que a modernidade é diferente. Se não acomodamos o abismo
entre o real e o ideal, o que existe e o que deveria existir, resta o quê?
Aceito que da infância ao adulto, o passado carrega muito para melhorar ou
dificultar a vida. E a ironia pode ser dispensável afim de acomodar o abismo
citado. Ainda não li o livro “As Ideias Conservadoras”, de Eduardo Coutinho. Há
um subtítulo: “Explicadas a Revolucionários e Reacionários”. De Trump ou Le Pen – acrescento nossos políticos,
na sua maioria –, trata-se de “mentes naufragadas”, gente que namora com o
totalitarismo. Recomendo o artigo de Coutinho para que se avalie com maior
precisão as ideias do autor português. Proteção econômica acima do social
esquecido, fechamento nos interesses de uma oligarquia a beneficiar a minoria
governante, cujo rabo se prende à corrupção. Atua-se com a memória no passado,
o que nele existe de locupletação. Recorrência ao “era uma vez...” típico de crianças,
não de adultos.
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