25/01/2017

DAR CORDA PARA OUVIR SOBRE A MORTE

Um homem tido como inteligente e culto me procurou. Achou que eu era alguém, pelas obras que publiquei, espécie de camaleão, capaz de responder a muitas questões. Começou logo se declarando agnóstico. Eu entendo que se trata de um indivíduo que não crê no que para ele não foi comprovado como verdadeiro. Pessoa diferente do cético que simplesmente não acredita, de forma niilista. Quero dizer: pessoa ferrenha, que nega tudo, sem jamais ceder a qualquer argumento. “Gostaria de conversar sobre coisas – foi logo dizendo – para mim obscuras, até que possa surgir algum esclarecimento.” E continuou: “O que me disseram eu não aceito... Posso estar louco, mas ainda não morri”. Respondi que estava certo por não se considerar morto: “De fato, a morte não existe”. “Não estou morto, não é?” “Nada desaparece da economia do Universo” – minhas palavras. Neste momento me vem à mente o que pensa um psiquiatra amigo, verdadeiro mentor: “As coisas, os elementos e os seres sofrem mutações, sem jamais se perder contato com a própria identidade.” Isso afetaria a visão de religiosos que imaginam, ao “morrer”, “dormir” até o dia do juízo final, ou ser arrebatado afim de atingir páramos celestiais. Há quem se vê, na “passagem”, logo de cara encontrando almas queridas já “falecidas”. Eu me cansaria, neste texto, de sempre utilizar aspas ao mencionar morte e falecimento. “E sobre a loucura eu diria: Alguém admitir a própria loucura é mais difícil que aceitar a morte ou o que nos acostumamos a chamar assim. Neurose ainda se trata do mais comum no mundo de hoje. Todos temos algum tipo de perturbação mental.” O visitante continua: “E essa coisa de planos espirituais, não entra na minha cabeça...” Respondo assessorado pelo mentor (é como o chamarei, até fornecer maiores esclarecimentos): “Penso assim... Aprendi ser a vida uma coisa só. Diferentes espaços em que ela se manifesta constituem degraus para cima e para baixo, com inúmeros pontos de contato, o que a torna completa. Não existe solução de continuidade entre uma forma ou outra de se manifestar. Maior ou menor densidade e mobilidade das partículas da matéria constituem a vida.” “Não entendo nada de Física...” “Vou aprendendo que existe uma ciência que aceita a Física clássica mas a expande com outras possibilidades... É chamada de Física Quântica. Ela auxilia numa mais profunda compreensão do que acontece. Algo que você pode pesquisar... A internet está aí.” Um tanto encucado pede que eu dê outras explicações: “Na passagem, natural que a pessoa deixe certas coisas da rotina cotidiana que servem como pontos de referência. Ao mudar para um país estranho temos que nos adaptar ao clima, à cultura, aos costumes do lugar. Entende? Um contrassenso pretender que os habitantes se adaptem a nós.”           
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DAR CORDA...
(Segunda parte da entrevista com o agnóstico)
Nós nos habituamos a nomes, daí chamá-lo de agnóstico. Lembro que se trata de quem aceita a dúvida metódica. Pode interessar-se pelo mistério, buscando desvendá-lo. Ele me devolve a questão do início da conversa: “Não estou morto, não é?”– pergunta que me fez. Aproveito e faço uma brincadeira: “Questão que eu também me coloco... Mas tenho a resposta: mesmo como um defunto velho, não existe  a menor dúvida”. “Não poderíamos, os dois, estar vivenciando um pesadelo?” “De fato, o que é realidade? E, o que não é projeção transitória da mente?” “Suponhamos que eu tenha morrido. Quando entrei aqui, e vi o senhor sentado numa cadeira, tudo me pareceu muito real: o meu corpo, as preocupações... Continuo com apetite para almoçar e jantar, todos os dias. O sol brilha, as pessoas andam pelas ruas (há ruas), trabalham, acredito que fazem sexo”. Eu, em silêncio, ouvindo. Depois de uma pausa: “Se vivíamos iludidos, mortos, continuamos iludidos? Não dá, é muito para a minha cabeça...” Arrisquei: “Como você explica a mudança no seu entorno, familiares ausentes, a casa diferente da em que você morava?” “Pode ser um sonho. De repente eu acordo ou não. Quanto pode durar um sonho?” “Ninguém dimensiona a duração de um sonho... Podemos, se for o caso, ir até onde está o seu corpo, no jazigo.” “Já fizeram isso comigo, mas não deu resultado.” Preferi não pedir detalhes sobre a constatação. “Então, o diagnóstico é mesmo da loucura. Você está louco... Não daqueles que babam na gravata ou se consideram Napoleão Bonaparte. Ainda não chegou lá.” Risos. “Sou uma pessoa ponderada, vou a fundo no que quero compreender... Desculpe-me, mas aventou a hipótese de a loucura ser do senhor?” “Confesso que essa ideia já me ocorreu.” O agnóstico continuou: “Com todo o respeito, sua pessoa e muitos religiosos podem sofrer alucinações, com ideias malucas sobre vida depois da morte, comunicação com espíritos, reencarnação, mediunidade, nirvana... e outras coisas mirabolantes. Sou uma pessoa com os pés no chão.” “Muitos pensam como você... Não creem na imortalidade... Quem não é massa de manobra? A multidão foi também responsável na crucificação de Jesus... Você acredita no Cristo?” “Como personagem histórico, não.” E acrescentou: “Até prova em contrário ele foi criado.” Nesta altura, nosso agnóstico reforça o próprio método de querer provas. Esboçou um leve sorriso. Não consegui evitar uma certa ironia: “Não leve a mal; você está sonhando.” Ele: “Conversar com o senhor é agradável; trata-se de alguém inteligente e espirituoso. Pratica sempre a técnica da “reversa”, a gente pensando.“ “Para você, a vida...” “... É simplesmente a vida.” (Pausa) “Daqui a pouco estarei despertando e, então, tudo voltará ao normal: abrirei os olhos, na minha casa, no ambiente que sempre me foi familiar.” “Que seja, mas você morrerá, um dia?” (Pausa) “Mas não morri... Nunca me senti tão pleno de vida.” “E quando morrer?” “Talvez vire pó! É o que acho. A reencarnação, por exemplo, talvez aconteça, em se referindo às moléculas que nos constituem... É difícil, realmente, admitir que algo possa se perder no Universo. Quem foi que disse ‘em a Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma?’ “Lavoisier.” “O senhor concorda?” “Em parte.” “Contradiz o grande cientista?...” “Você pode acreditar num ‘big bang’, expansão do próprio espaço, sem autoria definida, o Universo tendo surgido como a primeira criação. Dela todas as outras derivam. Num dado instante: ‘haja luz, e a luz se fez’. Momento que podemos chamar de divino. “ “Bem. Os nossos átomos, ou seja lá o que nos estruturam, ‘reencarnariam’ em formas subsequentes, não necessariamente humanas. Quem me convenceu a procurá-lo é adepto da tese de que já ‘fomos’ pedra, planta, bicho, gente.” “O princípio inteligente em sua escalada evolutiva!” Ele diz com prontidão: “Não cogito do espírito. Refiro-me a do que somos formados – não sei como explicar melhor.” “Imagino sua postura como uma concepção materialista.” “Não morrerei! Serei sempre alguma coisa, em algum lugar... Agora, essa teoria de que o espírito progride, de que somos essência, de que a nossa natureza difere do que chamamos matéria, sinceramente... Aliás, todas as religiões que nasceram na adoração dos elementos da Natureza se equivocaram.” Eu o deixei falar à vontade... Cada mente, um mundo completamente à parte, um universo em si mesmo. Percebi que naquelas circunstâncias, eu pouco tinha a dizer, a não ser de forma doutrinária... o que me recusei a fazer. Não dava para violentar o trabalho do tempo. Lembro um amigo que tive, verdadeiro mestre, espírito altamente criativo, que preferia não falar em Deus, nome a que recorreu pouco tempo antes da passagem,  ele sofrendo antes de cruzar a esquina da lua. É como se esgotasse a última munição na luta para não perder o pé de apoio na existência tão difícil de ser vivida e compartilhada. Confesso que eu, dadas as circunstâncias, com outras influências, poderia estar no lugar do agnóstico com o qual conversava. Tremi só de pensar, inspirado pela compaixão. Espíritos milenares, eu e ele, face a um necessário processo de  amadurecimento evolutivo. Cada um na sua, convicções no prato da balança. “Filho – disse-lhe num fiapo de voz –, o que tenho a lhe falar é que, independente do que você pensa, procure fazer o bem. Torne-se um colaborador (para não dizer alguém que ama irrestritamente), sempre interagindo de forma compreensiva (sem ser um tolerante passivo), sem se importar que esteja sonhando ou acordado. Tudo existe para cumprir finalidades. Não posso oferecer provas sobre a existência de um Criador, mas há de convir comigo que o acaso não é caso do caso. Quer queira ou não há leis que presidem aos fenômenos do Universo. Há cientistas agnósticos que trabalham na busca de uma teoria para tudo explicar. Enquanto a ficha não cai, há codificações científicas, filosóficas e morais que nos podem ajudar no que ainda não compreendemos.” “É razoável” – admitiu. Continuei: “O movimento dos astros, o ritmo das ondas, o pulsar do coração – tudo revela uma certa harmonia ou equilibração que transcende a nossa compreensão imediata. A semente, a flor, o fruto... Existe ordem, sequência. A criança, o jovem, o velho, a vida e a morte. Os estados emocionais que se alternam, que vêm, vão e tornam a vir. O dia e a noite, o frio e o calor, a tristeza e a alegria... Tudo está perfeitamente arranjado. Vivemos, sonhando ou acordados, dentro deste contexto. Somos, queiramos ou não, partes integrantes de um todo, partes essenciais... Não temos, sonhando ou acordados, como nos subtrair do rio que deságua no mar. Nada, absolutamente nada nos coloca à margem... Sei que os meus argumentos não são os melhores... Esqueçamos a vida, esqueçamos a morte, do que somos ou não somos constituídos. O certo é que estamos aqui conversando. Ou não? Procuremos vivenciar esta realidade ou ilusão. O mal conspira contra a nossa felicidade... Você, me deixe perguntar: está satisfeito consigo?”
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DAR CORDA...
(Terceira e última parte da entrevista com o agnóstico)
Sobre a pergunta que fiz sobre se ele estava satisfeito consigo, a resposta: “Não. Aparentemente sim. Mas sou um homem angustiado... Não gosto desta situação. Falta-me algo, que não sei o que é. Sofro depressão crônica, não tenho ânimo para nada. Às vezes me tapeio, como já deve ter percebido. Não sou alguém determinado e otimista. Se aparento isso é coisa só de fachada.” Tantos nãos, na falta de ânimo... alma, espírito... Voltamos à estaca zero. “Você admite que pensa para falar?” “É claro!” “Mente que raciocina... E o sentimento?” “Sim, sou sensível.” “Vamos falar então em razão e emoção, mera questão de terminologia... Já que você não quer falar em alma e espírito.” (Pausa) “Uma pedra pensa?” “Até onde sei, não.” “Você é mais que uma pedra!” “As plantas têm emoções como as suas?” “Como as minhas não.” “Você é mais que uma planta!” “Os animais... É capaz de se entender com eles, como nós nos entendemos... racionalmente?” “Sei que eles chegam a ser mais sinceros do que muitos humanos.” “Não tergiverse, você sabe aonde quero chegar. Você é mais que um animal, pode chegar a ser deputado.” Risos. “A afetividade de um cão pode superar à de uma pessoa.” “Não apele, meu amigo.” “Está me confundindo.” “Absolutamente.” “Eu me sinto...” “Ótimo!” “Eu não quero, não creio...” “Não crê ou não quer? Escolha. Ou não crê porque não quer?” “Não quero o quê?” “O que eu também não queria – a responsabilidade!” “Você é um bruxo!...” “Sonhando ou acordado?” “Eu quero ir embora... Por favor, não consigo me levantar desta cadeira. O que está fazendo?” “Não toquei em você!” “Tocou, tocou sim! Você é um feiticeiro! Socorro!...” Aí ele começou inexplicavelmente, a gritar. Perguntei sobre o seu nome, sempre pensando nele como o agnóstico. “Torquato.” “Se você responde por um nome, admite a própria individualidade.” “É uma tortura, meu Deus!” “Você chamou por Deus, Torquato?” “Pare, pare... Não quero.” E tapando os ouvidos, repetia sem pausa, numa reação inesperada para mim: “sou átomo, sou molécula, sou pó... Sou átomo, sou molécula, sou pó...” Senti que possuía alguma força para que minhas palavras ecoassem em seu cérebro: “um átomo faz o que quer?” Rápida pausa: “Dirige ou é dirigido?” “Não, um átomo não tem vontade própria... Pare, pare com isto!” “Então, você é mais que um átomo, pois reage... O que é um grão de poeira que o vento conduz para onde quer?” “O meu cérebro vai estourar!” “Olhe para mim... Relaxe e acalme-se!” “Um copo d’água... Estou me sentindo mal. Não deveria ter vindo aqui.” De respiração ofegante Torquato se mostrava pálido, o que me preocupou deveras. “Sinto-me desmoronar... Acho que vou morrer!” “Já discutimos muito sobre a morte, hoje...” “O que está acontecendo?” “Nem eu sei. A psiquiatria diria: mente espacial e temporalmente deslocada da realidade – voluntariamente deslocada da realidade!” “O que é? Não estou entendendo...” “Amnésia atemporal, ou seja: você apaga a memória do passado e anula a perspectiva do futuro! Tem muita gente com a sua doença, em quadros mais ou menos graves...” “Preciso de um remédio... Quero dormir, dormir... Ai, a minha cabeça!...” “Torquato!” – chamei-o, sem conseguir evitar que desfalecesse. Eu nunca tinha vivenciado uma situação dessas. De conversa em conversa chegamos a esse desfecho. Liguei para o mentor já mencionado aqui. Ele, médico espiritualista, providenciou a internação de Torquato. Suas palavras: “quando chega a hora de sermos despertados ou de despertarmos alguém, certas palavras são postas em nossos ouvidos ou em nossos lábios; palavras comuns, que, com certeza, já foram ditas um milhão de vezes, mas que, naquele instante, soam diferentes.” Eu não havia falado nada demais com o Torquato... Conversávamos apenas.

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