Intrigado com a falta
de ordem nas minhas coisas, a leitura da tese de Tati Costa, propicia mais do
que uma simples reflexão. Livros, textos, CDs, filmes, objetos que no dia a dia
demoro a achar, vivem a balbúrdia de um temperamento guardador pouco prático e
racional. Coisas como faturas, notas fiscais, documentos burocráticos, então,
nem se fala. Vegetam num limbo. Entendo que o retido e acumulado tem sua
própria aura e dinâmica. Reflete o espírito do guardador. Posso falar daquela
parte da casa que eu chamo de ateliê ou oficina. Ali, ferramentas, objetos,
sucatas, telas, quadros, esculturas, também pastas e papéis, recortes e textos,
o subjetivo e o concreto dão as mãos. Algarivia pela falta de ordem. Num acaso
encontro aquilo que preciso. Certo que, às vezes, me surpreendo com achados. O
útil e o aparentemente sem função, objetos, jornais, revistas, pelo menos no
agora, habitam o espaço. Oficinas, na parte mais alta do quintal, onde seria a
garagem da casa, função nunca acionada. Lá, o laboratório de fotografia,
analógico, dormindo o sono dos justos. Chamo esse lugar de “Espaço do Bispo”. Homenagem
ao grande artista Bispo de Rosário. Ao descer para outra caverna, a “Cave
Lourenço” (badalo meu sogro), as dezenas de ‘Cadernos do Beiral”, quadros,
fotos, pastas de textos, esculturas e os objetos mais significativos. O “mais” creio
que se trata do que me fala, da memória ao coração.
Cada “acumulado”
tem sua própria dinâmica. Abordá-lo, um plural de singularidades. Há relações
de poder aí. Parece que, no começo, a disposição das coisas obedece a uma
intenção cognitiva ou estética. Depois, vira fábrica de histórias. Quais as
“idades” do que pertence a um montão? O em uso, função pouco ativa... Chego,
também, a me recorrer, por vezes, ao guardado. Quando os intervalos de procura
se esticam, o material me faz pensar em fonte para contos, romances, história.
Raramente acontece o desfazer de coisas. Uma lixeira enorme, nesse lugar, quase
às traças. Aprendi, na tese, que os tempos se entrelaçam em circuitos. Entendo
que a forma do desprezo pode mudar no espaço-tempo... Nada garante que o
afastamento dos guardados seja para sempre, ou nulo o seu aproveitamento.
Coisas, fora de
certa ordenação, simplesmente acumuladas. Tudo poderia obedecer a uma lógica: o
que é texto, o que é imagem ou objeto . Como dispor tudo isso ao longo de uma fase
derradeira? Poderia estabelecer relações de maneira criteriosa. Vejo tudo, em
princípio, como suporte para projetos literários e plásticos. Há em mim o
memorialista e o ficcionista – para não falar, face à diversidade do que
retenho, o documental e burocrático.
Caráter
autobiográfico revelador, presidindo tal estado de coisas. Exigiria coerência e
solidez para um amontoado em expansividade. Sim. No que diz respeito à
“evidência de mim”, os guardados que não ouso chamar de arquivos, devem levar
em conta motivações presentes no sujeito acumulador. Qual a atitude de juntar
“coisas” e registros, expressões e apelos, na forma de se interagir com o
mundo? Além das “evidências de mim” há as “evidências de nós”. Guardados
pessoais espelham a consciência de si, construção de representações, vínculos
com os sentidos de permanência, legado através do qual os próprios pertences encerram
vidas. Como eu me posiciono no caminho existencial percorrido, via de mão dupla
do “eu”, “nós”, “outros”. Aqui importa uma dimensão hermenêutica, reflexiva,
como um jogo de espelhos entre autoimagens e construção de ditos e não ditos de
si. Imagem é uma forma que pensa. No processo memorialístico as imagens
contracenam (planos individual, coletivo, político e psíquico). Experiências
provêm de cenários diversos. Que cenários são esses? Sei que o tempero do
guardador, na representação dos pertences, é de paixão e lembranças até
nostálgicas. Meu papel de “bricoleur”, tensão dialética entre os polos da ordem
e da desordem. Isso justificaria os muitos anos de negligência, com relação à
reorganização de elementos díspares. Integrados, eles adquirem outras
significações. Uma das desculpas é a utilidade imediata ou futura do que parece
heteróclito. O que se junta ou coleciona vincula-se ao agente colecionador. O
objeto é retirado de sua função ordinária pela mediação simbólica. Que a gente
não se iluda se não for compreendido. Coletar simplesmente, ou colecionar de
forma mais consciente, é uma “categoria de pensamento”, não só acumulação obsessiva,
mas ato de reflexão e de realocação de coisas (espaços sociais, naturais,
culturais). Volto ao tema deste texto: arquivos têm mais a ver com testemunho
de esquecimentos do que de memórias. Torná-los condizentes com atitudes de
expressão e criação, de registro e pesquisa, um apelo para mentes industriosas.
Sei que meu momento é de expectativas frustradas. Graças ao belo trabalho da
neta Tati Costa, doutoranda, ao revisar sua tese, me surgiram novas possibilidades
arquivísticas e de divulgação. Originais literários, fotos, obras plásticas,
por enquanto retidas, possuem uma guarda provisória ou permanente. Claro que a
intenção é propiciar diálogo público com elas. Interessa-me a autodivulgação
digital para textos e imagens, veiculando-os na internet, ou através de
plotagens em ampliações, cuja aura original recebe mensagens concorrentes. Quero
ter certo cuidado para não banalizar minhas realizações pelo abuso de técnicas
reprodutivas, principalmente, com relação às imagens plásticas. Livros em papel
costumam exigir, comumente, apadrinhamentos que se distanciam da atenção de
escritores solitários, como eu. Daí a intenção em ser editor de si. Por anos
venho postando em meus blogs e twitter o que penso, sinto e faço. Hoje, graças
a esse leque de possibilidades que é o facebook, praticamente tudo aceitando,
transfiro longos textos dos blogs também para esse espaço de sociabilidade.
Todo artista pretende se comunicar. Mais do que ser palatável busco até um
dialogar inconsciente. A autopublicação me parece meio eficaz, com efeitos
residuais num mundo em que a monetarização substitui a energética troca de bens
subjetivos e materiais. Fora da expectativa de lucros imediatos, nem de
resultados positivos de reconhecimento a curto prazo, a identificação prazerosa
com o que faço é a maior motivação.
(Este
texto, num delírio, mando para o blogspot.com extendido para o facebook.
05.06.2014.)
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