05/06/2014

ALÉM DA MEMÓRIA, MUITOS ESQUECIMENTOS



Intrigado com a falta de ordem nas minhas coisas, a leitura da tese de Tati Costa, propicia mais do que uma simples reflexão. Livros, textos, CDs, filmes, objetos que no dia a dia demoro a achar, vivem a balbúrdia de um temperamento guardador pouco prático e racional. Coisas como faturas, notas fiscais, documentos burocráticos, então, nem se fala. Vegetam num limbo. Entendo que o retido e acumulado tem sua própria aura e dinâmica. Reflete o espírito do guardador. Posso falar daquela parte da casa que eu chamo de ateliê ou oficina. Ali, ferramentas, objetos, sucatas, telas, quadros, esculturas, também pastas e papéis, recortes e textos, o subjetivo e o concreto dão as mãos. Algarivia pela falta de ordem. Num acaso encontro aquilo que preciso. Certo que, às vezes, me surpreendo com achados. O útil e o aparentemente sem função, objetos, jornais, revistas, pelo menos no agora, habitam o espaço. Oficinas, na parte mais alta do quintal, onde seria a garagem da casa, função nunca acionada. Lá, o laboratório de fotografia, analógico, dormindo o sono dos justos. Chamo esse lugar de “Espaço do Bispo”. Homenagem ao grande artista Bispo de Rosário. Ao descer para outra caverna, a “Cave Lourenço” (badalo meu sogro), as dezenas de ‘Cadernos do Beiral”, quadros, fotos, pastas de textos, esculturas e os objetos mais significativos. O “mais” creio que se trata do que me fala, da memória ao coração.
Cada “acumulado” tem sua própria dinâmica. Abordá-lo, um plural de singularidades. Há relações de poder aí. Parece que, no começo, a disposição das coisas obedece a uma intenção cognitiva ou estética. Depois, vira fábrica de histórias. Quais as “idades” do que pertence a um montão? O em uso, função pouco ativa... Chego, também, a me recorrer, por vezes, ao guardado. Quando os intervalos de procura se esticam, o material me faz pensar em fonte para contos, romances, história. Raramente acontece o desfazer de coisas. Uma lixeira enorme, nesse lugar, quase às traças. Aprendi, na tese, que os tempos se entrelaçam em circuitos. Entendo que a forma do desprezo pode mudar no espaço-tempo... Nada garante que o afastamento dos guardados seja para sempre, ou nulo o seu aproveitamento.

Coisas, fora de certa ordenação, simplesmente acumuladas. Tudo poderia obedecer a uma lógica: o que é texto, o que é imagem ou objeto . Como dispor tudo isso ao longo de uma fase derradeira? Poderia estabelecer relações de maneira criteriosa. Vejo tudo, em princípio, como suporte para projetos literários e plásticos. Há em mim o memorialista e o ficcionista – para não falar, face à diversidade do que retenho, o documental e burocrático.
Caráter autobiográfico revelador, presidindo tal estado de coisas. Exigiria coerência e solidez para um amontoado em expansividade. Sim. No que diz respeito à “evidência de mim”, os guardados que não ouso chamar de arquivos, devem levar em conta motivações presentes no sujeito acumulador. Qual a atitude de juntar “coisas” e registros, expressões e apelos, na forma de se interagir com o mundo? Além das “evidências de mim” há as “evidências de nós”. Guardados pessoais espelham a consciência de si, construção de representações, vínculos com os sentidos de permanência, legado através do qual os próprios pertences encerram vidas. Como eu me posiciono no caminho existencial percorrido, via de mão dupla do “eu”, “nós”, “outros”. Aqui importa uma dimensão hermenêutica, reflexiva, como um jogo de espelhos entre autoimagens e construção de ditos e não ditos de si. Imagem é uma forma que pensa. No processo memorialístico as imagens contracenam (planos individual, coletivo, político e psíquico). Experiências provêm de cenários diversos. Que cenários são esses? Sei que o tempero do guardador, na representação dos pertences, é de paixão e lembranças até nostálgicas. Meu papel de “bricoleur”, tensão dialética entre os polos da ordem e da desordem. Isso justificaria os muitos anos de negligência, com relação à reorganização de elementos díspares. Integrados, eles adquirem outras significações. Uma das desculpas é a utilidade imediata ou futura do que parece heteróclito. O que se junta ou coleciona vincula-se ao agente colecionador. O objeto é retirado de sua função ordinária pela mediação simbólica. Que a gente não se iluda se não for compreendido. Coletar simplesmente, ou colecionar de forma mais consciente, é uma “categoria de pensamento”, não só acumulação obsessiva, mas ato de reflexão e de realocação de coisas (espaços sociais, naturais, culturais). Volto ao tema deste texto: arquivos têm mais a ver com testemunho de esquecimentos do que de memórias. Torná-los condizentes com atitudes de expressão e criação, de registro e pesquisa, um apelo para mentes industriosas. Sei que meu momento é de expectativas frustradas. Graças ao belo trabalho da neta Tati Costa, doutoranda, ao revisar sua tese, me surgiram novas possibilidades arquivísticas e de divulgação. Originais literários, fotos, obras plásticas, por enquanto retidas, possuem uma guarda provisória ou permanente. Claro que a intenção é propiciar diálogo público com elas. Interessa-me a autodivulgação digital para textos e imagens, veiculando-os na internet, ou através de plotagens em ampliações, cuja aura original recebe mensagens concorrentes. Quero ter certo cuidado para não banalizar minhas realizações pelo abuso de técnicas reprodutivas, principalmente, com relação às imagens plásticas. Livros em papel costumam exigir, comumente, apadrinhamentos que se distanciam da atenção de escritores solitários, como eu. Daí a intenção em ser editor de si. Por anos venho postando em meus blogs e twitter o que penso, sinto e faço. Hoje, graças a esse leque de possibilidades que é o facebook, praticamente tudo aceitando, transfiro longos textos dos blogs também para esse espaço de sociabilidade. Todo artista pretende se comunicar. Mais do que ser palatável busco até um dialogar inconsciente. A autopublicação me parece meio eficaz, com efeitos residuais num mundo em que a monetarização substitui a energética troca de bens subjetivos e materiais. Fora da expectativa de lucros imediatos, nem de resultados positivos de reconhecimento a curto prazo, a identificação prazerosa com o que faço é a maior motivação.      

(Este texto, num delírio, mando para o blogspot.com extendido para o facebook. 05.06.2014.)
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