Desenterrar cadáver, depois de anos, o que
resta dele. Incrível: Entre trapos e pó, talvez cabelos, em pequeno tufo, o
resto que vi. Nada mais. Aqueles homens enormes, com desvelo e respeito, sem
outra proteção para o próprio corpo, só luvas, mexendo naquilo... No final,
numa caixinha, me mostram a cabeça, parte de trás, crânio escurecido, como o
saído de um rescaldo de incêndio. Estou com a minha câmera fotográfica
preparada. O homem (sei que ele tem nome), me mostra a caixa óssea que envolve
o cérebro, com o maior respeito. Sei também que é para eu flagrar o ato,
documentando-o. Peço-lhe friamente para que me mostre a caveira de frente. Não é
bem um rescaldo, pois não há calor nem fumaça.
Ao fotografar sei que
me ponho diante de cena que poderia ocorrer em um delírio. Aprendi que
vivenciar momento doloroso ou de horror, simbolicamente, tem a ver com aquelas
dramatizações que encenei em hospital psiquiátrico, com os internos. Algo que,
graças aos ensinamentos da psiquiatra Nise da Silveira, lhe dá poder face a imagens
aterrorizadoras do inconsciente. Alimenta contra futuros surtos de natureza psicótica.
Muitas vezes, assistindo a filmes ou documentos visuais de cirurgias espirituais,
gente que me acompanha cobre os próprios olhos com as mãos. A pessoa diria “não
quero ver isso!”... ou simplesmente deixa a sala. Lembro um jovem da comunidade
terapêutica em que trabalhei se recusar a fazer o papel de um assassino, em
peça criação coletiva do grupo. Semanas depois, recebendo alta, ele matou uma
pessoa. Aliás, há horror todos os dias nos jornais televisivos. E vejo o grande
interesse pelas cenas de criminalidade, até comentando-as, num aparente sadomasoquismo.
Agora, eu, naquele cemitério, assistindo à exumação de uma pessoa querida, quero
compreender minha inesperada atitude. É sadomasoquista? Reflito filosoficamente,
como num escape? Trata-se de catarse? Eu, espiritualista, aprendo que nosso
corpo terreno é uma espécie de roupagem da fagulha que é eterna. A figura atual
que tenho da pessoa querida, reduzida a escombros naquela caixa, possui notável
luminosidade que sinto nos dias e horas em que penso nela... Imagem que vale
como um salmo – hino de louvor a Deus. Devo observar que não revi o que registrei,
talvez temendo marketing de autopromoção, sensação também de não mostrar a
imagem fotografada para ninguém. Ela continua no túmulo da câmera. Nem a coloquei
em arquivo do PC. Não pretendo assistir a outras exumações. E se necessário, nada
de fotografar a cena. Bastou essa vez. Aliás, não costumo comparecer a velórios
de gente querida. Obrigado, quando necessário, não me detenho na face do morto...
Prefiro guardar a imagem dele quando vivo e em movimentação. Hoje, não acredito
na morte como fim. Meu irmão, recentemente falecido, passou por dias muito sofridos.
Acredito que, na mesma proporção, foi iluminado por luzes divinas. Sinto que a
tia querida do dia da exumação também obterá assistência na mesma medida das
dores por que passou. A morte representa a oportunidade de um renascimento, alimentado
pelas ricas experiências adquiridas aqui na terra. Defeitos e erros merecem a
oportunidade de um resgate. Assim é a vida em todas as dimensões. A exumação
foi de minha mãe que nos deixou há décadas, mas sempre presente em nossos corações.
Um espírito, muito, muito querido.
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