Penso na própria casa. Se está para cair, a
primeira coisa é tirar-lhe o aspecto asséptico e pôr ordem no caos. Mas o que
aconteceu para a ameaça de queda? Quando trabalhei numa comunidade terapêutica
(eufemismo para hospital psiquiátrico), o diretor dizia que o papel dele era
“não deixar a casa cair”. Fazia-se sentir, nessas horas, um poder autoritário.
Sobre o prenúncio de coisa má existem, desde tragédias ao que tem pequena
monta. Sabe-se que tragediazinhas podem aclarar as coisas (lembro o filme Blow
Up, de Antonioni).
Um primeiro impulso, antes que o pior
aconteça, é atuar no espaço, mantendo-o limpo, e pondo cada coisa em seu lugar.
Ajudantes e servidores ajudam, ou nossas próprias mãos, pernas e braços. Cada
objeto ao alcance do olhar e primando pela sua utilidade. Algo subjetivo ou com
função explícita e concreta. Ar e luz entrando por onde sempre entram. O
aspecto “para que serve” chega a ser essencial. O odor e os mosquitos às vezes são de difícil
controle. Ocorre até com a necessidade de consertos, higiene e bela aparência.
Enfim, nada é perfeito, sendo que nem estados histéricos (Freud) solucionam
certos problemas.
Uma família cresce, aumentando o número de
filhos, netos e bisnetos. O que pode ser acrescido por agregados humanos até
inesperados. Hóspedes, dependendo da temporalidade, e seu sabor agridoce.
Existe o incontrolável, até certo ponto, das crianças, mais indivíduos
biológicos e psicológicos do que pessoas racionais de bom senso. Adoráveis
quando chegam e, mais adoráveis ainda quando cessa o anarquismo ruidoso ao se
afastarem. São essencialmente lúdicas, bela lição para adultos circunspectos.
Então, manter ordem e paz, principalmente
para quem desembarcou nas últimas quebradas da vida, não é fácil. Nem sempre
dominam os que já adquiriram por hábito controlar. Como não criar desafetos
inamovíveis? Questão para os que primam pelas relações amorosas, não só por
obrigação mas por sinceros sentimentos.
A MARCA
A estabilidade da vida no lar muitas vezes
não chega a eliminar tensões ocasionadas pelo choque de ritmos. Estes,
entendidos como olhares, o sapato sujo dentro de casa, objetos mal guardados, o
vento frio da janela aberta, enfim, o que pode causar dissonâncias. Tudo de
fato é música, inclui compassos e frases, tons e semitons, harmonias.
Facilitada a clivagem do certo e do errado, por quem sente maior autoridade nas
relações pelo sangue, pela casamento ou pela amizade. Quem, cujo estatuto é o
de maior mandão, dono ou dona da casa, e os neuróticos “por natureza”. “Ordem e
progresso” podem coroar estados de psicomanias. O aspecto asséptico já
mencionado significaria ambiente sem alma. Alma entendida como vitalidade espiritual.
Lembro a casa de um tio, a gente hospedando
lá, sem poder entrar na sala de visitas. Era proibida. Tudo muito acoplado nos
espaços, móveis e objetos inertes como cadáveres.
Recordo, também, filhos de intelectuais,
escritores, impossibilitados de adentrar o ambiente “isento de patogenia” dos
pais. Entendo que o processo de reflexão, criação e pesquisa chega a exigir
clausura. Presente a marca do outro, identidade alheia ou inesperada, ícone de
perturbação.
Hoje, no processo digital (às vezes, até da
escrita), influências sonoras ou presença física humana, de inopino, tendem a bloquear ou cortar
o fluir do pensamento ou da marcha do intelecto. O desconcertante ou
desequilibrador costuma exigir providências que destoam o clima de paz e aceitação
mútuas. A reação do surpreendido pode ser adaptativa ou de intempestivas
reações. Pela índole dele, o se trancar ou não, pode surgir como dilema.
O CÓDIGO
Pouco ou muito asséptico, o número de ações
perturbadoras cresce ou não. Interagir num espaço alterado, tarefa a exigir pequenos
ou grandes esforços. A disposição de móveis e objetos, a casa como extensão do
corpo. Pinturas, fotos, ramal dos olhos. Mesas, cadeiras, complementos
subjetivos da mente. Estantes, armários, depósitos abertos ou fechados da
memória. Cama, extensão do corpo em decúbito.
Tapetes, extensão dos pés. Luminárias, o sol no interior da casa. De
cima para baixo ou de um lado para outro. Tudo, signos significantes (desculpe
o pleonasmo). Arbitrários ou não, pouco interessa. Almofadas da cama, costas
apoiadas para leitura. O problema é a identidade entre o nome e a coisa.
Não se deve ver sempre o outro como um
desafinado para a melodia pré-estabelecida. Até possibilidade de ricas trocas,
ajuda e belas surpresas. Um grupo fechado tende a perder inspirações. Uma
cansada estrutura a dois, muitas vezes necessita de boas chacoalhadas. O que
ensejaria novas ideias, atitudes ou valores.
Sempre o que falta e o que sobra.
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