02/01/2016

MEU INIMIGO QUERIDO

Penso na própria casa. Se está para cair, a primeira coisa é tirar-lhe o aspecto asséptico e pôr ordem no caos. Mas o que aconteceu para a ameaça de queda? Quando trabalhei numa comunidade terapêutica (eufemismo para hospital psiquiátrico), o diretor dizia que o papel dele era “não deixar a casa cair”. Fazia-se sentir, nessas horas, um poder autoritário. Sobre o prenúncio de coisa má existem, desde tragédias ao que tem pequena monta. Sabe-se que tragediazinhas podem aclarar as coisas (lembro o filme Blow Up, de Antonioni).
Um primeiro impulso, antes que o pior aconteça, é atuar no espaço, mantendo-o limpo, e pondo cada coisa em seu lugar. Ajudantes e servidores ajudam, ou nossas próprias mãos, pernas e braços. Cada objeto ao alcance do olhar e primando pela sua utilidade. Algo subjetivo ou com função explícita e concreta. Ar e luz entrando por onde sempre entram. O aspecto “para que serve” chega a ser essencial. O odor  e os mosquitos às vezes são de difícil controle. Ocorre até com a necessidade de consertos, higiene e bela aparência. Enfim, nada é perfeito, sendo que nem estados histéricos (Freud) solucionam certos problemas.
Uma família cresce, aumentando o número de filhos, netos e bisnetos. O que pode ser acrescido por agregados humanos até inesperados. Hóspedes, dependendo da temporalidade, e seu sabor agridoce. Existe o incontrolável, até certo ponto, das crianças, mais indivíduos biológicos e psicológicos do que pessoas racionais de bom senso. Adoráveis quando chegam e, mais adoráveis ainda quando cessa o anarquismo ruidoso ao se afastarem. São essencialmente lúdicas, bela lição para adultos circunspectos.
Então, manter ordem e paz, principalmente para quem desembarcou nas últimas quebradas da vida, não é fácil. Nem sempre dominam os que já adquiriram por hábito controlar. Como não criar desafetos inamovíveis? Questão para os que primam pelas relações amorosas, não só por obrigação mas por sinceros sentimentos.

A MARCA

A estabilidade da vida no lar muitas vezes não chega a eliminar tensões ocasionadas pelo choque de ritmos. Estes, entendidos como olhares, o sapato sujo dentro de casa, objetos mal guardados, o vento frio da janela aberta, enfim, o que pode causar dissonâncias. Tudo de fato é música, inclui compassos e frases, tons e semitons, harmonias. Facilitada a clivagem do certo e do errado, por quem sente maior autoridade nas relações pelo sangue, pela casamento ou pela amizade. Quem, cujo estatuto é o de maior mandão, dono ou dona da casa, e os neuróticos “por natureza”. “Ordem e progresso” podem coroar estados de psicomanias. O aspecto asséptico já mencionado significaria ambiente sem alma.  Alma entendida como vitalidade espiritual.
Lembro a casa de um tio, a gente hospedando lá, sem poder entrar na sala de visitas. Era proibida. Tudo muito acoplado nos espaços, móveis e objetos inertes como cadáveres.
Recordo, também, filhos de intelectuais, escritores, impossibilitados de adentrar o ambiente “isento de patogenia” dos pais. Entendo que o processo de reflexão, criação e pesquisa chega a exigir clausura. Presente a marca do outro, identidade alheia ou inesperada, ícone de perturbação.
Hoje, no processo digital (às vezes, até da escrita), influências sonoras ou presença física  humana, de inopino, tendem a bloquear ou cortar o fluir do pensamento ou da marcha do intelecto. O desconcertante ou desequilibrador costuma exigir providências que destoam o clima de paz e aceitação mútuas. A reação do surpreendido pode ser adaptativa ou de intempestivas reações. Pela índole dele, o se trancar ou não, pode surgir como dilema. 
O CÓDIGO

Pouco ou muito asséptico, o número de ações perturbadoras cresce ou não. Interagir num espaço alterado, tarefa a exigir pequenos ou grandes esforços. A disposição de móveis e objetos, a casa como extensão do corpo. Pinturas, fotos, ramal dos olhos. Mesas, cadeiras, complementos subjetivos da mente. Estantes, armários, depósitos abertos ou fechados da memória. Cama, extensão do corpo em decúbito.  Tapetes, extensão dos pés. Luminárias, o sol no interior da casa. De cima para baixo ou de um lado para outro. Tudo, signos significantes (desculpe o pleonasmo). Arbitrários ou não, pouco interessa. Almofadas da cama, costas apoiadas para leitura. O problema é a identidade entre o nome e a coisa.
Não se deve ver sempre o outro como um desafinado para a melodia pré-estabelecida. Até possibilidade de ricas trocas, ajuda e belas surpresas. Um grupo fechado tende a perder inspirações. Uma cansada estrutura a dois, muitas vezes necessita de boas chacoalhadas. O que ensejaria novas ideias, atitudes ou valores.
Sempre o que falta e o que sobra.  


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