24/08/2010

LUZ QUE VEM DO LIMBO

Minha mulher sempre vê programas sobre problemas do cotidiano, o que inclui jornais televisivos. Neles, alguma ideia nova salvadora sobre alimentação, bem-estar corporal, filosofia de vida. O que seria de mim sem a companhia dela em meio século de existência comum? Ela me ajuda a não perder o pé de apoio. Quando jovem, no ensino hoje chamado de médio, cursando o clássico, um colega japonês, exímio em matemática, me chamava de metafísico. Pela minha formação eu queria que todos virassem espiritistas. Aos poucos, pela cultura alternativa dos anos 60 e 70, passagens pela romântica PUC e pela sorbonesca USP, espécie de liquidificador temperou ideias e valores, preparando o que estou hoje. Leituras e filmes, de compreensão difícil a princípio, forjaram um autodidatismo bem diferente do pensamento burocrata dos “oficiais da educação e da cultura”, como diz Luiz Felipe Pondé. Tudo que estudei, foi pela metade. Sou um medíocre que, talvez, tenha dado certo. A reverberação do que falo e escrevo oferece algum estímulo para que continue buscando o difícil que é compreender a si mesmo e o mundo. Reajo ao controle externo, por vezes com reações límbicas, não aprovadas pelo socialmente correto. A hipocrisia dos que falam em justiça social, e que roubam os direitos dos outros. Há coisas que servem a todo tipo de interferência, violentando a autonomia alheia. No fim das ideologias cresce o mau-caratismo. Predominam nos meios comunicativos os que invadem o mínimo de decência ética e moral, ainda existente, com suas receitas de autoajuda e sucesso. Perceberam nossos parafusos espanados, insistindo em apertá-los, Claro que, quando menos se espera, os ligamentos se rompem, revelando nossa insignificância espiritual. Com os seus bons sentimentos, há muito ódio escondido atrás de palavras doces. Pondé fala da dificuldade que temos de encarar o óbvio: “nem todos nós temos talento e a maioria de nós é e sempre foi medíocre”. Meu amigo Moraes dizia que qualquer médico de plantão dá receita, mas consciência da doença, quem é que dá? Voltando aos programas televisivos de autoajuda, sobre o que comemos, o que sentimos e o que pensamos, lembro um que insistia sobre o problema de ter tralha em casa. Esses objetos velhos e inúteis. Disse brincando para minha mulher que seria interessante ver a dona do programa entrevistar Arthur Bispo do Rosário, um dos maiores artistas do século passado. Interno de hospital psiquiátrico, desfiando trapos para obter linha a fim de tecer palavras e, principalmente, interessado em todo tipo de cacareco e sucata, a fim de compor a visão que tinha do mundo. Realizou obras inesquecíveis de grande valor estético. Imagino residências sem um espaço para armazenar quinquilharias, arquivo aparentemente morto mas vivo de memória, para que esta renasça e não se perca. A riqueza de sujestões de objetos/sujeitos podem produzir obras proustianas, acordar belos espíritos e ações que não podem ser esquecidas. Para terminar não posso deixar de falar no meu limbo de velharias, coisas da memória, desde casacos velhos, peças de arte a restaurar, ferramentas enferrujadas, aparelhos eletrônicos superados, aguardando a volta do vinil (aliás, o que já está acontecendo), outros cheios de recordações, como os quitutes de Proust. Para não falar dos papéis e pastas em que ponho alguma fé, textos fracos e fortes, que podem virar samba. Um velho e secular tear, meio desmantelado e suas vibrações do começo da cultura do homo faber. Sei que o duro é administrar tudo isso. Janela que se abre no sótão inconsciente sempre pode oferecer uma nova luz. Talvez ajude na compreensão do humano no mundo artificial.
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