24/10/2018

O SONHO DE BOZZO




Estado de angústia. O jeito é adormecer. Foi quando ocorreu o sonho de Bozzo. Hoje ele vive sob uma chuva de flores. A consagração popular dentro de um caos político de proporções assustadoras. No sonho, trevas. A elas, mistura de íntima inquietação, ao lado a figura de Aldo, olhar sereno, consolo para as almas crentes. 

- Aldo – exclamou Bozzo, entre ansioso e atormentado –, não acredito que a gente deva se curvar sob o jugo do Sistema político e social.

Bozzo enumera, ao longo da conversa, o que ele chama de “assalto” ao instituído pela tradição e que preserva a educação das famílias, a formação escolar, as regras de sobrevivência contra o crime, a sexualidade, o poder do Estado, como lidar com criminosos e as minorias depravadas e submissas em seus hábitos e costumes.
Não faltaram críticas aos discursos sobre proteção ambiental e à saúde dos cidadãos – estúpidos cuidados e restrições. O chamado golpe de 64 foi um movimento restaurador que praticou a tortura sim. Mas com toda a dignidade... O problema dela foi parar aí, não matar os criminosos. Teve outras complacências: com a homofobia, o sexismo e o racismo.  

- Bozzo. Como encarar tudo isso, na sua pressa exigida, a não ser guerreando com o mundo?
- É o que penso, seja o caso. As oportunidades estão aí.
Aldo insiste:
- Até que ponto se agrediria a democracia, os direitos humanos e as liberdades individuais? E o lado religioso e evangélico...
- Sou pelo “olho por olho, dente por dente” – o que da Bíblia mais tem a ver com a realidade.

Bozzo é pelo poder das armas. Bandido deve ser bandido morto; quem produz mais deve merecer o melhor trato; quem desvirtua o zelo pela tradição é inimigo.

- E o Novo Testamento com as lições de Jesus? Têm a ver com o amor entre as pessoas e o respeito ao meio ambiente.
- Isso produz efeitos nas pessoas mais ignorantes e desclassificadas. Ora, as reivindicações do nosso povo exigem um condutor enérgico e altivo. Principalmente numa situação tão delicada como as de hoje.

Aldo, olhar sereno, retruca:
- Sempre houve “salvadores da pátria” até com atitudes revolucionárias. O Messias, porém, veio efetuar a verdadeira revolução nos corações e nas almas.

Bozzo sorrindo algo irônico acrescenta:
- Poderemos esperar renovações, sem o concurso dos homens poderosos?
- E quem haverá mais poderoso do que Deus?
Face à invocação de Aldo, Bozzo morde os lábios e prossegue:
- Não concordo com os princípios de inação e creio que o Evangelho somente poderá vencer com os prepostos dos governos, autoridades administrativas. Elas comandam os destinos.
- Jesus nos esclareceu – já que você citou a Bíblia –, que o seu reino não é deste mundo. Jamais foi visto interessado em conquistar a atenção dos homens mais altamente colocados na vida.
- Aldo, note bem: Jesus sempre honrou a Verdade e o Amor, mas só dele se abeiravam leprosos e cegos, pobres e ignorantes...
E imprimindo aos olhos inquietos um fulgor estranho, Bozzo impaciente:
- Ótimo ao lembrar Jesus... Não acredito que seus princípios e lições hoje se implantam em mentes e corações. Com brandura, o que ocorre é a fuga do Evangelho. A figura do Messias, tão deturpada, deve ser imposta às autoridades. Temos que multiplicar esforços a fim de que nossa posição de superioridade seja reconhecida em tempo oportuno.
Aldo, expõe com doce veemência:
- Bozzo, Bozzo!... Os poderosos do mundo são transitórios.
- Há militares e religiosos entre eles. Muitos ligados e outros que se juntam à política administrativa, até empreendedores nas  mais diversas áreas. Vamos buscar a conversão dos homens. 
- O Mestre asseverou que o maior na comunidade será sempre aquele que se fizer o menor de todos.
Bozzo lembra o que ouviu de um seu correligionário: A gente se acercando de um grupo de notáveis – pois ninguém sabe tudo – o caminho pode se tornar plano...

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O SONHO DE BOZZO 2
Aldo com serena arrogância:
- Hoje, entre admiração e interesse motivado pelo ódio ao Sistema, além de boa dose de frustrações com o Congresso dos homens, mais que aprovação inconteste pelas qualidades pessoais, você funciona como a pior das piores alternativas.
Bozzo excitado ao extremo:
- A figura do Messias deve ser imposta à “Corte”. O povo, tal a carência no atendimento das mais básicas necessidades, há tempo que o descartou. Necessário encarar isto. Temos de multiplicar esforços para que nossa posição de superioridade seja reconhecida. Sei que é um jogo, mas só assim venceremos. Farei o possível para estabelecer acordos, sem deixar de ser quem sou, pessoa com poucas qualidades para governar...
- Tal traço de humildade é até louvável... Mas quantas mentiras e descompassos não ocorrerão? Quem é manejado acaba mudando de credo.
- Estou preparado para o que der e vier. Sei que a imprensa costuma ser um problema. Conto menos com ela e mais com as redes sociais.
Aldo obtempera:
- Jamais se engana por todo o tempo. E o Mestre tem visão abrangente para sondar e reconhecer os corações. A toga dos juízes são roupagens para a Terra... E a superficialidade dos manipuladores encobre as misérias da inteligência e dos conhecimentos históricos e evangélicos.
- Meu destino é alcançar o poder – enfatiza Bozzo – , custe o que custar. A maioria se porá ao meu lado, pelo que represento de transformação. Por hora, vale promover até escândalos.
- Muitas vezes são necessários, mas ai de quem os provoca – acrescenta Aldo. Autoritários que chamam a ditadura de movimento, aprovam a tortura e encorajam execuções extrajudiciais, em última análise, matam a democracia.  
E continua:
Líderes populistas já se utilizaram de vassoura para varrer a corrupção; roupa de gari, como se estivessem com os pés no chão; prometiam acabar com os Marajás, além de fazer correr o sangue das ilicicitudes... Promessas não cumpridas, quando eleitos, sempre uma constante até o obscurantismo dos dias atuais.
Só pensando:
Bozzo acreditava que suas ideias eram novas, ou que pelo menos resgatavam tradições do ensinamento bíblico. Pelo apoio que recebia, e dos evidentes procedimentos de desumanização, como o assassinato de representantes de desafetos – partidos que se lhe opunham, gays, negros, índios, mulheres –, mantinha seu interesse por armas, militarização e milícias.
Lembra ocorrências:
“Bozzo, ele sim”, “a caça aos veados vai ser legalizada”, gritos aqui e ali. “Suástica não”, mas símbolo budista da paz – interpretação tendenciosa de um delegado, pela escoriação a canivete na pele de desafetos.
A Bozzo, com esclarecedora firmeza: Como llhe fica a consciência quando você difama opositores, mobiliza fanáticos, intoxica quem vai votar? Você, ajoelha diante das redes sociais sabendo que a cibertecnologia polui a política. Inclusive, não há memes inocentes, elas servem a propósitos de aliciamento. O humor irônico chega a tomar o papel cômodo de quem não quer pensar de forma responsável. Com os militares no poder, o enrustido carinho pelo fálico continua. O que acontece no mundo ricocheteia aqui.
Bozzo: - Precisamos da autoridade na política, de nacionalismo pátrio, e respeitar a tradição nos costumes. Não mais baderna e progressismo. A esquerda chega a ser mais autoritária do que a direita.
Aldo - Um perigo cortejar religiosos dinheiristas para angariar  votos. A alta hierarquia, seja do credo que for, engole sapos e silencia. Refugiados e imigrantes servem de pretexto para a xenofobia.
Bozzo enuncia:
- Os inimigos estão aí: petistas, sem-terra, sem-teto, ambientalistas, ativistas, quem fica de mimimi.
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Manhã de muito sol e ainda um frio da estação passada. Na véspera, em mãos, o manifesto “POR UMA FRENTE PROGRESSISTA  DO TAMANHO DO BRASIL”. Não me lembro de tê-lo assinado ao lado de mais de 22 mil pessoas. Se posso ainda assinar, assino agora. Vibro com os nomes de pessoas que sempre admirei pela coragem de dizer o que sentem e pensam. Gente que não separa o coração das ideias. Intelectuais, artistas, escritores, políticos, ex-ministros, comerciantes, jornalistas, cineastas, advogados, empresários, economistas, educadores, músicos, filósofos, editores, compositores, curadores, ativistas, etc., etc.
Publicação em – Folha de S.Paulo, sábado, 20 de  outubro de 2018 –, como INFORME PUBLICITÁRIO PELA DEMOCRACIA. 
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Bozzo recorda seu empenho ao juntar forças com economistas, gestores empresariais, políticos e militares. Meditava na execução de seus desígnios. A madrugada o encontrou decidido na embriaguez do que pretendia. Na troca de reconhecida liderança ele contaria com jovens eleitores, políticos e seus currais, aqueles de suas fileiras de desaprovação. Unia-se a desorientados face às lições da história, fanáticos frustrados de todas as classes sociais, e os mais revoltados com o Sistema. Sentia-se apoiado como o representante oficial do país diante do mundo. Órbita artificial cuidada com raro leso de insinuações e mentiras. Praticamente aboliu os marqueteiros profissionais. Entre a maldade e a violência, o Mestre parecia demasiado humilde e generoso para vencer sozinho. Bozzo ainda se considerava, tendo às mãos autoridades e privilégios políticos, capaz de satisfazer suas justas ambições para a vitória do “olho por olho, dente por dente”. Recebeu relevantes promessas dos que viam nele trampolim para a conquista de melhor posição na cúpula do poder. E para o povo simbolizava a salvação no rito de passagem anunciado como merecida premiação. Quem não quer emprego e cargos para satisfazer interesses de sobrevivência e autorrealização? É como se o algorrítmo da verdade estivesse no desabrochar de nova alvorada.
TEMPOS DEPOIS
O sistema democrático foi ainda mais humilhado e escarnecido, conduzido à cruz da ignomínia, sob vilipêndios e flagelações.       
No seio de Bozzo ainda havia suposições a declarar. Quem antes o apoiava só queria mais poder. Os mais ricos e poderosos agiam como rentistas (acumuladores de dinheiro e bens materiais). Agora desejavam o que ele abraçara, sorrindo com sarcasmo. Bozzo reconheceu a falibilidade das promessas humanas. Ele, que tanto prometera, se via no espelho tosco da própria alma. Companheiros de fé, encontrou-os vencidos, em cada olhar a exprobração silenciosa e dolorida. Até os mais íntimos o tinham como um rebento desprezível. Atroz remorso lhe pungia a consciência, lamentando por não aceitar as advertências do sincero amigo Aldo Costamares.
Nessa hora, com a perda da democracia, o céu da cidade se cobriu de nuvens escuras e borrascosas. Bozzo peregrinou em derredor de lembranças malditas, alimentando o desejo de desertar do mundo – suprema traição aos compromissos mais sagrados da própria vida. Terrível relampejar rasgava o firmamento. A Terra da nação era agora vilipendiada pela morte do melhor regime, entre os piores – a democracia. É como se o Mestre dissesse: Ninguém pode melhorar senão por mim!
(Duas partes postadas no ipansotera.blogspot.com, 14.110 visualizações antes desta publicação. Foi também para o Facebook / 21-10-2018.)

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