Quem, como eu, tem o hábito de
empilhar coisas, engavetar papéis e pastas, pôr e dispor objetos, esculturas e quadros
(pinturas, fotos)... Sem dar muita bola para o espaço-tempo e para o que é útil
e necessário, a sensação é a de que vivencio um quadro cubista, de linhas e
planos, colagens sem sentido aparente. Certo que o pensamento lógico não é o
meu forte. Adoro quando pensadores apontam limites na racionalidade e na
ciência, e falam na física e metafísica dando as mãos. Na filosofia, tal a
multiplicidade de visões sobre o mundo e as coisas, que podemos nos perder nas
construções do espírito.
Penso no duplo papel da memória:
como depositária de quinquilharias e o potencial que tem de nos auxiliar na
lembrança do que conforta e enriquece.
Situações marcantes chegam a se revelar. Até o que colore de forma naturalista
o presente e descortina o futuro com novas possibilidades.
Ligado em linguagens, nas palavras
e imagens, no sonoro e nas expressões corporais, aquilo em que fomos protagonistas
nos cai mais de perto.
Um exemplo: Hoje, na casa do
Beiral, em uma das mais entulhadas cavernas – a “Cave Lourenço” –, um pedaço de
jornal, daqueles feitos por mim e em que participei, anos 80/90, amarelado pelo
tempo, aparece “A última sessão de cinema”, com a crônica “Não se desfaz
infelicidade com pílulas”. O texto é sobre o filme “Psicose”, de Alfredo
Hitchcock. Há um subtítulo: Pessoas vivem em armadilhas, nunca fogem de nada.
Anos depois, em 2009, escrevi o livro “Cinema com Pipoca” em que falo também
nesse filme. Comparo as palavras do jornal “Opinião” e o que publiquei no novo
século. O “olho de cão” de Hitchcock aparece com força maior no antigo texto.
Diálogos mudos da pessoa que se sente culpada, dirigindo o carro, depois
trocado por outro. Chovia. O “não-não” do limpador de para-brisa. Na ocasião,
para (verbo) era acentuado. “Bates Motel”, doze quartos, doze vagas, “só pára
aí quem erra o caminho”, diz Norman Bates, vivido por Anthony Perkins. Nunca
mais foi o mesmo, este excelente ator. A longa e chocante sequência do chuveiro
desenhada plano a plano. Daí em diante o costume de trancar a porta do banheiro.
Filme do início dos anos 60, antes da revolução sexual. Nada de cenas muito
eróticas. O sugerir chega a ser mais forte do que o explicitado do cinema
atual. Hitchcock mexe com o inconsciente sob as vistas das teorias de Freud. Complexo
de Édipo, gente como pássaro empalhado (Norman é taxidermista). Filme sem
vômitos verdes, nem crucifixos defloradores. Lida-se com recalques, gente plena
de antiego, ao sabor das depressões, que hoje crescem ainda mais, não só nos
adolescentes. Sem os necessários ajustamentos, como amadurecer?
Concordo com o que pus no texto de
80: nem todo voyeur é psicopata. Você
que, como eu, gosta de cinema, também é voyeur.
Imagens chegam a nos perturbar (nunca se fotografou tanto como agora)? Fugimos
delas? Fortalecem nosso ego? Podem nos devorar?
“Psicose” não é filme de terror,
desses comuns, para espantar moscas. Escrevi em 2009: Histórias que partem de
fatos reais – e nunca a corrupção correu
tão a solta – mexem com a memória remota e próxima. Podem nos ajudar a entender
esse mundo de Deus.
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