11/01/2016

ARMADILHAS DA MEMÓRIA

Quem, como eu, tem o hábito de empilhar coisas, engavetar papéis e pastas, pôr e dispor objetos, esculturas e quadros (pinturas, fotos)... Sem dar muita bola para o espaço-tempo e para o que é útil e necessário, a sensação é a de que vivencio um quadro cubista, de linhas e planos, colagens sem sentido aparente. Certo que o pensamento lógico não é o meu forte. Adoro quando pensadores apontam limites na racionalidade e na ciência, e falam na física e metafísica dando as mãos. Na filosofia, tal a multiplicidade de visões sobre o mundo e as coisas, que podemos nos perder nas construções do espírito.
Penso no duplo papel da memória: como depositária de quinquilharias e o potencial que tem de nos auxiliar na lembrança do que  conforta e enriquece. Situações marcantes chegam a se revelar. Até o que colore de forma naturalista o presente e descortina o futuro com novas possibilidades.
Ligado em linguagens, nas palavras e imagens, no sonoro e nas expressões corporais, aquilo em que fomos protagonistas nos cai mais de perto.
Um exemplo: Hoje, na casa do Beiral, em uma das mais entulhadas cavernas – a “Cave Lourenço” –, um pedaço de jornal, daqueles feitos por mim e em que participei, anos 80/90, amarelado pelo tempo, aparece “A última sessão de cinema”, com a crônica “Não se desfaz infelicidade com pílulas”. O texto é sobre o filme “Psicose”, de Alfredo Hitchcock. Há um subtítulo: Pessoas vivem em armadilhas, nunca fogem de nada. Anos depois, em 2009, escrevi o livro “Cinema com Pipoca” em que falo também nesse filme. Comparo as palavras do jornal “Opinião” e o que publiquei no novo século. O “olho de cão” de Hitchcock aparece com força maior no antigo texto. Diálogos mudos da pessoa que se sente culpada, dirigindo o carro, depois trocado por outro. Chovia. O “não-não” do limpador de para-brisa. Na ocasião, para (verbo) era acentuado. “Bates Motel”, doze quartos, doze vagas, “só pára aí quem erra o caminho”, diz Norman Bates, vivido por Anthony Perkins. Nunca mais foi o mesmo, este excelente ator. A longa e chocante sequência do chuveiro desenhada plano a plano. Daí em diante o costume de trancar a porta do banheiro. Filme do início dos anos 60, antes da revolução sexual. Nada de cenas muito eróticas. O sugerir chega a ser mais forte do que o explicitado do cinema atual. Hitchcock mexe com o inconsciente sob as vistas das teorias de Freud. Complexo de Édipo, gente como pássaro empalhado (Norman é taxidermista). Filme sem vômitos verdes, nem crucifixos defloradores. Lida-se com recalques, gente plena de antiego, ao sabor das depressões, que hoje crescem ainda mais, não só nos adolescentes. Sem os necessários ajustamentos, como amadurecer?
Concordo com o que pus no texto de 80: nem todo voyeur é psicopata. Você que, como eu, gosta de cinema, também é voyeur. Imagens chegam a nos perturbar (nunca se fotografou tanto como agora)? Fugimos delas? Fortalecem nosso ego? Podem nos devorar?
“Psicose” não é filme de terror, desses comuns, para espantar moscas. Escrevi em 2009: Histórias que partem de fatos reais –  e nunca a corrupção correu tão a solta – mexem com a memória remota e próxima. Podem nos ajudar a entender esse mundo de Deus.    

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